CATANDO PAPÉIS & CONTANDO HISTÓRIAS

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Ramayana de Chevalier

Em 1961, o saudoso Ramayana de Chevalier aceitou convite do falecido governador Gilberto Mestrinho e assumiu a Secretaria de Administração do Estado. Passou aquele ano em Manaus, depois de longo período no Rio de Janeiro.
Ramayana de Chevalier, 1958
Além do exerício administrativo, emprestava sua pena ao jornal A Gazeta, do amigo Arthur Virgilio Filho, que foi cassado pela Revolução de 1964, quando senador pelo Amazonas.
Entre suas publicações, encontram-se inúmeros sueltos contra o finado governador Plínio Coelho, antecessor e "criador" do professor Mestrinho. Mas, havia crônicas de qualidade sobre assuntos diversos, saidas da capacidade de Ramayana. Reproduzo uma delas, onde o autor relembra episódios da história pátria: a deposição do presidente antes da posse de Getúlio Vargas, a quem Ramayana prestou serviços substanciais. Foi um propagandista do governo Vargas.

Espanando a memória


ERA de noite e eu estava com pressa. Mesmo sem causa, Manaus já dá pressa em quem está de carro. O asfalto faz isso. Estamos adquirindo uma fisionomia atual e civilizadíssima. O asfalto é um tobogã do progresso. Mas, como eu ia dizendo, era de noite, quando passei junto ao obelisquinho em frente ao “roadway”. Quatro velas estavam acesas. Quatro. Tremeluzindo, chorando, nas suas lágrimas de cera. Estavam ali, postas pelo povo. O “demos” grego, anônimo, gigantesco, imortal. O povo. Que mãos colocaram ali aquelas velas? Não importa. Elas significavam uma mensagem dos humildes a Getúlio Vargas. Não quero examinar a sua política, não desejo senti-lo como cacique. Aquelas velas despertaram, no meu íntimo, um desfile de recordações.
Era no Rio de Janeiro, e havia pouco terminara o drama revolucionário de 1930. A Junta Militar já havia ido comunicar ao presidente Washington Luís, que ele estava deposto. O cardeal dom Sebastião Leme que já se encontrava no Palácio da Princesa Isabel, onde residia o presidente, para acompanhá-lo, numa pá de cal melancólica, até à sua prisão no Forte do Leme. Tudo como se houvesse uma peça teatral, sem ensaio. Lentamente, de faces encovadas, o Sr. Washigton Luis saiu de sua câmara, acompanhado de S. Eminência. Era um dia claro mas sem sol. Quando surgiu na varanda, ao alto da escadaria que despeja para os jardins dianteiros, o general Mailan D´Angrone, então Chefe Militar do Palácio, adiantou-se majestosamente e deu a ordem para a tropa que esperava, perfilada e firme, diante do edifício:
“Á Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, em continência!”

Ouviu-se um ruído de coices de armas, o ajuste dos fuzis ao tronco, olhares brilhantes de soldados obedientes, e o presidente Washington Luís desceu, solene, devagar, mirando o povo que se aglomerava na rua Pinheiro Machado, para entrar no carro oficial que o conduziria à prisão e ao exílio. O Rio estava esfuziante. Havia terminado a revolução e os panfletos terríveis de Mário Rodrigues estavam sendo fiscalizados pela censura. A derradeira manchete dessa fase, em A Crítica, dizia: “Acaba de chegar ao Rio de Janeiro, o senhor Getúlio Vargas, o anti-Cristo de rabo de porca”.

Era assim a violência das paixões naquele momento. Getulio apareceu ao povo, pouco depois, moço, de ar jovial, e envergando a sua farda de general da Revolução. Dois anos depois, saltava eu de novo no Rio, dessa vez fardado para as trincheiras de 1932. Engajado no III Batalhão do 9º R.I., segui como tenente para o Vale do Paraíba. Era um dos defensores do governo Vargas. Até hoje, tenho honra nisso. Servi às ordens do general P. Góis, no Exército de Leste. Tomei parte no ataque a Queluz, e Areias, a Silveiras, o mais feroz de todos, a Barro Vermelho, a Cunha e fiz ocupação em Tremembé e Taubaté. Demorasse mais um pouquinho revolução e eu teria ficado morto no ataque a Engenheiro Neiva, uma fortificação de cimento armado. Fiz ponta de vanguarda, fui ferido, repousei no Hospital de Lorena, lutei na frente, faminto, barbado, rastejando com os meus soldados. Em Silveiras, entrei com o III do 9º, de parabellum, entre os soldados em baioneta calada. Minha fé de ofício é honrosa e simples. Fui promovido por ato de bravura. Sempre com o pensa-mento voltado para o Chefe da Nação, tolerante, bondoso e trabalhista.
Assisti, anos mais tarde, à humilhação do gigante. Foi no dia da prisão de Gregório Fortunato, nos jardins do Palácio do Catete. Antes de entrar no automóvel que o levaria ao Galeão, Fortunato ainda discutia no jardim. Cercavam-no soldados da Aeronáutica e oficiais. Junto à grade do lado, eu observava a cena. E no segundo andar, dentre as frinchas da venziana, vi um vulto que contemplava, em silêncio, toda a teatral prisão do chefe da guarda pessoal.
Era o presidente Vargas. Nada podia fazer. Nada esperava mais. Tinha prometido ao grupo de emergência, constituído no Galeão, que o levariam até lá, preso, para depor. O homem que viera nas asas da revolução de 30, o chefe político do uma Nação que ele impulsionara para a frente, o Chefe supremo dos exércitos em 1932, o ditador das Américas, o Grande Líder, o presidente Constitucional do Brasil, depois, iria descer do seu pedestal, para comparecer, como um preso comum, diante de oficiais que ele promovera, diante de oficiais que ele havia ajudado a generalar-se.
Era ao crepúsculo e eu não pude ver os seus olhos. Das frinchas, ele se despedia, tristemente, do seu amigo e escudeiro. Durante mais de vinte anos, a sua vida fora guardada por aquele cão de fila negro e fiel. Alguns dias depois, passara eu a noite mal dormida, com os acontecimentos. A cidade do Rio estava com os nervos de poraquê. Pelas oito horas da manhã, abri o rádio, todos acordados em minha casa, esperando a notícia da prisão do Grande Presidente. Foi então que escutamos a mensagem:
“Alô! Alô! Brasil! Atenção! Acaba de se suicidar no Palácio do Catete o presidente Getúlio Dornelles Vargas”.
Foi o maior choque que já sofri em minha vida. Todos, de mim as minhas filhas, a minha pupila, todos choramos. O Rio, o Brasil inteiro chorou. Só não o fizeram os que continuaram a maquinar traições contra sua memória. Tive vontade de sair de casa, armado, para desafiar todo mundo. Era o desespero, era a ferida popular. Se ele tivesse apelado para o povo, nenhum poder o derrubaria! Agradeço, “àquelas quatro velas, estas lembranças estão sentidas. Só havia quatro velas acesas. Mas elas valeram por um milhão delas. Porque foram colocadas pelos que, ainda hoje, choram pelo maior dos brasileiros de todos os tempos.
A GAZETA. Manaus, 20 de abril de 1961

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