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quarta-feira, maio 16, 2012

Bondes, de Almeida Barroso (final)

Conclusão do artigo que Carlos Alberto de Almeida Barroso (1918-1993) escreveu em 1952, quando os Bondes ainda circulavam precariamente pela cidade de Manaus.


A Crítica, 19 agosto 1952


Houve uma época em que apareceu um [bonde] Remédios por baixo. A verve da cidade encontrou para ele logo um designativo: “chá de bico". Mas o chá de bico surgiu já numa fase em que o bonde começava a sentir a ameaça que iria transformar o seu destino. A ameaça das dificuldades que mais tarde chegariam ao ponto de justificar o crime inominável de se pensar em extingui-los. Mesmo assim, “chá de bico" viveu ainda bons momentos e embalou muitas ilusões...
Quando vinha a noite e o fim do dia se aproximava, ainda encontrávamos o bonde em plena forma, movimentando a vida noturna da cidade. A partir das sete, rara era a casa em cuja janela ou porta não palpitava um coração a espera de um bonde. Ele então se transformava num mensageiro de paz e de esperança. De fato, quando o bonde se aproximava, o vibrar da campainha e logo após o aparecimento da querida e desejada presença justificavam bem as palpitações daquele coração.                                                         
Os bondes, porém, como as criaturas, sempre tiveram direito a um repouso. E este vinha, de modo geral, quando se aproximava a meia-noite. Notava-se, nesse momento, que eles se tornavam sôfregos, apressados, como se não quisessem perder um minuto sequer do tempo que se lhe destinava para dormir enquanto a cidade dormia.

Deslizavam, realmente, céleres, produzindo uns ruídos estranhos pelos trilhos, ruídos que pareciam lamentos, gritos angustiosos no fundo da noite, que se perdiam, muitas vezes, à proporção que as horas avançavam, em lúgubres ressonâncias. Tinha-se a impressão que não se tratava de prenúncios de repouso, mas de verdadeiros estertores de vidas que se esvaíssem...

Finalmente, depois que
quase todos os bondes se recolhiam, ficava em movimento ainda um, o último bonde, o de depois da meia-noite, incumbido de conduzir a tripulação dos demais, fazendo uma rápida distribuição pelos bairros. Dele, também, se serviam os retardatários, que residiam longe do centro da cidade.

Bonde na av. Eduardo Ribeiro, c1900
Recordo-me que sobre o último bonde, Ramayana de Chevalier certa vez escreveu um impressionante artigo. Um artigo em que retraçava, com cores incisivas, todo o drama experimentado por esse finalizador das labutas diárias do tráfego, outrora tão caracteristicamente conhecido da cidade no momento em que iniciava seu sono.
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Hoje, desapareceu o bonde para a cidade noturna. Em compensação e talvez como vingança, foi-se a vida noturna da cidade. Mas a fúria homicida - diria bondicida - é irrefreável. Daí a intenção de alguns homens públicos, talvez insensatos, de acabar de uma vez por todas com os bondes. Não temem esses insensatos, que se isso acontecer os bondes se vinguem mais uma vez contra Manaus, que sempre foi tão deles quanto nossa? Seria bom pensarem nisso.

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